FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
FOLHETIM – A História de Benvinda (16º. e último Episódio)
Benvinda também fala daquela vez em que a madame lhe gritou e lhe disse que voltasse a limpar tudo e lhe chamou sâle de portugaise e ela se virou, a enfrentou, lhe atirou com o esfregão à cara e, perante o espanto da outra, lhe respondeu em bom português, limpe você sua cabra francesa. Escusado será dizer que voltou para casa a chorar de raiva, e lá foi procurar trabalho, desta vez um bureau, limpeza a altas horas da noite, teve de ser, cada vez mais curto o tempo de dormir, consolava-se a pensar, quando morreres tens muito tempo de estar deitada.
Numa prateleira debaixo do balcão, está uma caixa de cartão, daquelas de embalar camisas, atada com uma fita de seda cor-de-rosa, rematada com um laçarote. Reparei que já duas vezes lhe pegou, a fazê-la sair do lugar, mas voltou a pô-la onde estava, sem dar explicações e sem que eu lhas pedisse, sendo todavia evidente para as duas a sua discrição e a minha curiosidade. Foi nesta altura da história que Benvinda pegou finalmente na caixa, a rodeou com ambos os braços, a encostou ao peito, me olhou, com olhos rasos de água e depois ma entregou.
Abra, estão aí papéis que eu mal sei ler, nada de importante, coisas que eu fui guardando, para não me esquecer de tudo, que não é bom a gente deixar de saber donde vem e o que passou para chegar até hoje. Talvez lhe interessem, talvez contem histórias melhor do que eu, que sou uma língua-de-trapos, falo, falo, para não dizer nada de jeito. Também há umas fotografias, eu posso depois explicar-lhe de quem são, algumas já estão muito estragadas, a humidade dá cabo de tudo, os meus joelhos que digam. Leve até quando lhe for preciso.
Não tem de quê. Antes de se ir embora, eu ainda lhe quero dizer: Não pense que ficou a saber muito mais com o que a Benvinda lhe contou. Há outras histórias parecidas com a minha, mais desgraça, menos desgraça, coisas feias, coisas bonitas, gente boa e gente má há em todo o lado. Pode contar tudo, tal e qual, mas não ponha lá o meu nome. Olhe, chame-me Benvinda que era o nome da minha avó que Deus guarde, ou outro, que ideias não lhe hão-de faltar. A minha Berta é que não pode saber nada disto, que não havia de gostar, ou daí, quem sabe, a rapariga é bicho bravo, mas tem muito orgulho na família, lá isso tem.
De emigração já muito se disse, mas a história de cada emigrante é única, gravada e guardada na própria pele, até ao dia em que dela não fique mais que a memória de um tempo áspero que lhe varreu a terra e a vida e o levou a valentias e cobardias de que só os homens acossados são capazes.
A história de Benvinda aqui fica, uma mentira recheada de verdades. Como todas as histórias.
FIM